Eu nunca ganhei flores. Confesso que já fantasiei enviar flores a mim mesma, no trabalho ou na escola, de maneira "anônima", para experimentar a sensação de receber flores. Nunca me deram flores.
Hoje é o dia de pautar a discussão "não quero flores, quero respeito", principalmente nas redes sociais. Mas, fora do oito de março, também é possível encontrar nas rodas de conversa sobre um suposto feminismo "guarda-chuva" esse tema debatido e esbravejado. Concordo em partes com a afirmação. Também não me serviriam dúzias de rosas se continuassem me tratando como tratam. Mas, vamos tentar aprofundar isto?
Hoje, oito de março, é mais um dia comum na minha vida, dia em que acordei um pouco mais tarde, perdi a paciência com o filho que não faz nada na hora em que é solicitado – nem dez minutos depois, nem meia hora depois – e tomei café, fui levá-lo para a escola e já colecionei o primeiro abuso do dia. Só coloquei os pés para fora de casa uma vez no dia de hoje e nesta única vez fui assediada, de maneira nojenta e invasiva, como todo "bom e velho" homem cis-gênero sabe fazer muito bem. De que adiantaria então flores vindas destes homens? Nada, concordo absolutamente.
No entanto, é preciso também tratar de outra perspectiva, uma forma de ver que me leva a perguntar: "e então, eu não sou uma mulher?" A mesma pergunta foi feita por Sojourner Truth em 1851 e, hoje, nós mulheres negras temos de nos perguntar o mesmo. O assédio não é e nem nunca foi "privilégio", ao contrário do que circulou em um texto, produzido e reproduzido por mulheres que fazem parte de uma maioria política opressora, nas redes sociais muito recentemente, e o assédio no caso das mulheres negras sempre vem acompanhado do racismo. Sarah Baartman foi exposta nua como "espetáculo" em 1810, período histórico em que as opressões sofridas por mulheres não negras eram muito diferentes das que sofremos hoje.
"Eu não serei livre enquanto houver mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas" – audre lorde (assim mesmo, minúsculo).
A história das mulheres, brancas e negras – isto para não mencionar as indígenas brasileiras que também sofrem um apagamento nesta data (e no resto do ano, porque não dizer) – tem suas particularidades, suas diferenças e apontar isto não é para tentar causar desconforto ou reduzir a importância da data, mas, é preciso sempre conhecer do que falamos, a história daquilo que "comemoramos" e entender muito bem qual o nosso papel na história, para só então decidirmos se queremos ou não flores no dia de hoje.
Quando nós, mulheres negras, fomos colocadas no posto de "sensível", merecedora de cuidados ou a que não poderia trabalhar por ser frágil, por exemplo? É possível dizer que, lá em 1914, quando foi instituído o Dia Internacional da Mulher, nós estávamos em pé de igualdade em luta, em colocação social e em papel na sociedade? Não. Não estávamos!
A história de lutas e busca por mudanças sempre esteve presente dos dois lados da história, mas, nós precisamos por muito tempo, e algumas de nós até hoje precisam, lutar para, primeiramente, sermos enxergadas como mulheres e, só então, lutarmos por outros direitos que também foram negados a nós. A gentileza no simbolismo de dar flores certamente é um destes cuidados que muitas de nós, mulheres negras, nunca experimentaram ao longo da vida. Falo aqui de um gesto que simboliza essa gentileza, mas que pode ser representado por muitos outros que ainda nos faltam diariamente. Experimentar este lugar de ser cuidada e amparada, deixando nítido que não falo aqui, portanto, das opressões do machismo e dos comportamentos machistas de tratar a mulher como incapaz. Seria uma experimentação nova para a maior parte das mulheres negras brasileiras. As flores que, nesse contexto, simbolizam a gentileza, não são um "mimo" comumente cedido a nós.
Acervo Instituto Moreira Sales - Mulheres e Homens escravizados lavorando fazenda de café em São Paulo - 1824 |
A nós foi negado o local "diferenciado", reservado para mulheres brancas, no período da escravidão e permanece o tratamento da herança escravocrata em nossa construção social até os dias de hoje. Angela Davis escreveu em seu livro "Mulheres, Raça e Classe":
"Obrigada pelos seus senhores de escravos a trabalhar de modo tão "masculino" quanto seus companheiros, as mulheres negras devem ter sido profundamente afetadas pelas vivências durante a escravidão. Algumas, sem dúvida, ficaram abaladas e destruídas, embora a maioria tenha sobrevivido e, nesse processo, adquirido características consideradas tabus pela ideologia da feminilidade do século XIX. Um viajante daquela época observou escravas e escravos que voltavam para casa após o trabalho no campo, no Mississipi, e relatou que o grupo incluía "quarenta das maiores e mais fortes mulheres que já vi juntas; todas vestiam um uniforme simples, xadrez azulado; suas pernas estavam nuas e os pés, descalços; elas tinha uma postura altiva, cada uma com uma enxada no ombro, e caminhavam com um passo livre, firme, como soldados [chasseurs] em marcha." (DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boi Tempo, 2016. 23p. Tradução: Heci Regina Candiani.)
Colocadas assim então em pé de igualdade de tratamento social com os nossos homens, também escravizados, posso apontar que não eram direcionadas a nós as flores, nesta data por muitos anos, ainda que com hipocrisia. Então, porque não considerar pedir junto com o respeito, a equidade social, o fim dos assédios, da violência, do racismo e do machismo, as flores que também não nos foram dadas nestes anos?
Puxa, obrigada pelo texto. Eu, branca, fiquei agora com vontade de te mandar flores, para agradecer pelo que aprendi.
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