terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O SOFRIMENTO DO POVO NEGRO NÃO COMOVE, VIRA ESPETÁCULO

Temos dentro da academia o discurso de que não podemos desprezar grandes títulos por serem racistas, exclusivamente os racistas são tolerados, sob a justificativa de serem grandes obras e escritos, geralmente, por "homens do seu tempo" vivendo em outras normas sociais. É principalmente sob este argumento que Gilberto Freyre é ovacionado nas bibliografias universitárias em diversos cursos, inclusive o meu (história na Universidade Federal de Minas Gerais). O livro "Casa Grande e Senzala" foi publicado em 1933, ou seja, inicio do século XX e apesar da sua inegável contribuição para a historiografia brasileira, é racista, machista, sexista, romantiza o estupro e a dominação dos senhores principalmente sobre as mulheres escravas. Mas, ainda assim, estamos falando de um livro publicado pela primeira vez há oitenta e cinco anos atrás, inicio do século passado, de lá pra cá homens e mulheres negros em luta procuram avançar nas produções intelectuais no sentido de cada vez mais não permitir que o sofrimento de um povo sequestrado e escravizado na diáspora seja romantizado nas nossas produções intelectuais. 
A luta subentende avanço, evolução, exceto para editora mineira "Portal", que julgou apropriado publicar em 2018 um livro da escritora Jéssica Macedo que romantiza estupro, abuso, escravidão e cárcere privado, segundo sua sinopse. 

"A dor pode transformar, mas o amor é capaz de curar...  Brasil 1824.  Amali foi arrancada do seio de sua família na África, transportada em condições desumanas em um tumbeiro, que atravessou o atlântico, e vendida como escrava. Os pesadelos só parecem piorar quando não é capaz de compreender nem os outros que vieram na pavorosa viagem com ela. Presa como um animal, vendida em um mercado negreiro e marcada a ferro vai passar por sofrimentos que jamais imaginou quando vivia em sua terra natal. Ela se tornará escrava domestica de um recluso e frio barão, produtor de açúcar do interior de Minas Gerais, que possui mais marcas do que aquelas que tenta esconder. Sua curiosidade, fará Amali questionar sobre a ala queimada do casarão e trará à tona lembranças que ele tenta esquecer a todo custo. Em meio a dor, o amor florescerá de uma maneira inesperada para curar a cicatrizes de ambos."

O SOFRIMENTO DO POVO NEGRO NÃO COMOVE, VIRA ESPETÁCULO
(Título racista publicado em Belo Horizonte)

A autora, revisores e editora acharam uma boa ideia publicar, em meio a luta para avanço na busca pela equidade racial, em meio a luta contra a valorização da cultura do estupro, em meio a luta para que a história de homens e mulheres negras seja contada da maneira correta, em meio a tudo isto a Editora Portal decide publicar um título que faz uma alusão ao clássico "A Bela e a Fera", onde a "Bela" é uma escrava sequestrada em África, torturada, marcada a ferro e que vive seu cárcere do lado da "Fera", um senhor de escravos amargurado e, não bastasse todo o absurdos, a cereja do bolo é uma história de amor entre os dois. 

A democracia racial celebrada por Gilberto Freyre deu cria, diante de nossos olhos, oitenta e cinco anos depois, sob forma de romance, escrito por uma mulher mineira e, pasmem, publicado com celebração. 

É inevitável lembrar de Angela Davis, em "Mulher, Raça e Classe", ao nos depararmos com este tipo de notícia, afinal, existem vários aspectos em que podem ser exploradas e contadas as histórias de sofrimento das mulheres negras em situação de escravidão, mas, sempre me assusta quando isto é fetichizado, consumido e reproduzido sem nenhum pudor. Acho difícil imaginarmos, por exemplo, a construção de um romance entre uma judia e um soldado fascista de Hitler, você consegue? Isto não está no nosso imaginário, porque não fomos uma nação construída sob a desumanização dos Judeus e nem sob a minimização do sofrimento deste povo, não se romantiza este sofrimento, soa como errado e imoral. O mesmo não acontece com as mulheres negras, assim fica fácil romantizar uma mulher negra sendo torturada no miolo de um livro, não é mesmo?

O que geralmente nos perguntamos ao dar de cara com uma notícia destas é: "como podem várias pessoas terem achado isto uma boa ideia?", não é mesmo? Pois a resposta talvez esteja em alguns pontos importantes, como a nossa herança escravocrata, aliada a ausência de profissionais negros nas editoras ou mesmo pessoas com um certo letramento racial que a levassem a debater a publicação de algo tão absurda, antes de ser feito. 

A Editora até o momento desta publicação (02:10AM 14/2) adotou como estratégia o silenciamento das pessoas que entraram em contato através da página apontando as problemáticas do racismo e  apologia ao estupro, por exemplo, contida na obra mostrada apenas pela sua sinopse. Sendo assim, é preciso que encontremos outras maneiras de denunciar este abuso. 

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6 comentários:

  1. Mas... como é possível afirmar tantas coisas sobre uma obra que você não leu? Isso é, no mínimo, tendencioso, não acha?

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    1. Oi, Gabriel, tudo bem? Não sei se você leu o texto com atenção, mas, pulou um detalhe importante, neste trecho "A luta subentende avanço, evolução, exceto para editora mineira "Portal", que julgou apropriado publicar em 2018 um livro da escrito Jéssica Macedo que romantiza estupro, abuso, escravidão e cárcere privado, segundo sua sinopse." = [...] SEGUNDO SUA SINOPSE. Espero ter ajudado :) Um abraço!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Olá! Excelente texto. Eu entrei na página do livro no Skoob pensando em fazer uma resenha criticando a obra. Porém nem meu lugar de fala e nem meu conhecimento sobre o tema me permitem uma boa crítica. Por favor, faça isso! Procure o livro no Skoob e aponte esse disparate!
    Grande abraço!!!

    Robisom Lima

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