Conversar com uma pessoa que nasceu, cresceu, viveu e para sempre vai viver numa pele que não representa uma ameaça à ela chega a ser quase uma experiência antropológica para uma pessoa negra. Eu, mulher negra e com um alvo nas costas há 28 anos não sei o que é viver sem medo. Nunca soube, mesmo quando eu não sabia de onde vinha o medo que sentia. O ódio é a linguagem com a qual pessoas negras são educadas e, perceba, não estou aqui falando dos nossos lares, do nosso local de segurança, estou falando de uma estrutura social que conversa com pessoas negras através do ódio e somente ele. Frantz Fanon, psiquiatra martinicano que escreveu “Os Condenados da Terra”, título publicado em 1961, tratou em sua obra da linguagem da violência aplicada pelo sistema colonial aos corpos e mentes negras, durante a guerra de libertação da Argélia. Fanon analisa ali um contexto sendo contemporâneo da repressão colonial, mas peço licença para analisar o contexto brasileiro aos olhos do psiquiatra.
Ter a tranquilidade de poder não sentir ódio é, com toda a certeza, um privilégio.
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Todos os dias lemos notícias de injustiças, desmandos e ataques diretos às pessoas negras e periféricas. Ao pensar na Indústria da Cultura, segundo o filósofo Adorno, é possível ver qual o papel da mídia na hora de formar e tranquilizar uma sociedade em relação às suas mazelas, mas, e quando a indústria da cultura é pensada para amenizar apenas “um lado” da história? O sistema colonial faz o trabalho de manter dóceis alguns membros da sociedade que, mesmo sendo negros, não conseguem se revoltar contra o sistema. Mas, aí é que está, nem todos nós conseguimos nos anestesiar.
Quando você cresce sem a necessidade de se revoltar com um sistema que foi feito para atrasar, oprimir e matar (no extremo do genocídio negro) a única coisa que lhe garantiria o mínimo de incômodo com a situação de quem sente essa necessidade é uma formação ideológica bastante refinada (referência ao antropólogo Kabengele Munanga, em seu livro “Negritude: Usos e Sentidos") mas numa sociedade criada sob a falsa ideia de uma democracia racial e a cordialidade entre as diferentes raças (do ponto de vista social e não biológico), fica muito difícil criar em pessoas não negras essa revolta inata que nasce com as pessoas negras. Já está mais do que provado que biologicamente o conceito de raça não se sustenta, em especial para explicar as diferenças entre pessoas, mas, socialmente o conceito existe e é forte, por isso é impossível não falar de racismo na hora de identificar as diferenças sociais entre pessoas negras e brancas num país como o Brasil.
Raça aqui é fator determinante. E, quanto mais escuro, mais decisivo é este fator na vida das pessoas. A pigmentocracia no Brasil é real.
Pessoas negras são o alvo direto da necropolítica atualmente instalada no Brasil. Criar um inimigo para poder exterminá-lo com aprovação de várias camadas da sociedade não é novo, mas vem se fortalecendo cada dia mais e mais. E nós, pessoas negras minimamente conscientes, nos revoltamos com isso, odiamos isso. Daí, voltamos a Fanon, se é com ódio que dialogam conosco, qual será a linguagem usaremos para responder aos ataques, se não o mesmo ódio?
Odiar é normal e esperado quando nossos corpos são alvo diariamente deste ódio social.
E é a colonialidade que tem a missão de manter domesticado este ódio.
Evocar a paz e a “civilidade” diante da raiva e indignação de pessoas negras com a violência sistematizada é, no mínimo, desrespeitoso. Confundir a reação do oprimido com a violência do opressor é também desrespeitoso para com quem não conhece outra linguagem de tratamento a não ser a violência.
A sociedade espera o que além disso de quem é criado para saber que deverá se submeter ao ódio?
A sociedade espera o que além disso de quem é criado para saber que deverá se submeter ao ódio?
sim, o racismo, o preconceito e todas as formas de violência advindas dele são merecedoras do nosso ódio. Não existe outro sentimento que expresse tão dramaticamente o que sofremos diariamente. Mas a questão a ser discutida com profundidade é ódio contra quem? Devemos expressar nosso ódio contra o racismo ou contra as pessoas não negras, os brancos que não são afetados pelas mazelas sociais, políticas e econômicas estruturais dessa sociedade desigual? Sentimos ódio, ódio secular que passa de geração para geração com a pigmentação da nossa pele, ódio contra todas essa injustiças. Mas volto ao meu questionamento, esse ódio deve ser direcionado contra todos os brancos, essa gente privilegiada que não sente na pele as feridas abertas que carregamos na alma? Odiar o racismo é uma necessidade, isso não discuto. O que discuto é a forma de como devemos expressar esse ódio. No texto fala-se da violência do oprimido em represália à violência do opressor. Usa-se Fanon até com certa propriedade. Só que a realidade de Fanon era diferente da atual. Se formos aplicar agora o que ele nos diz devemos expressar esse ódio na forma pura e simples da violência contra todos os brancos, sejam eles racistas ou não. Até porque, seguindo o raciocínio que embasa o texto, todos os brancos são nossos opressores. Sendo assim, todos merecem receber o nosso ódio, serem alvos da nossa violência reativa contra a opressão. O seu texto é muito bom mesmo, mas ainda sim, na minha opinião, não toca na questão principal, no centro da questão. Fala e exalta o ódio, fala da violência e exalta essa violência redentora, libertadora. Só que não diz o que fazer, o caminho a seguir. Deixa em aberto para várias interpretações. E isso sim é perigoso. O não dizer é uma forma de apontar um caminho se livrando de qualquer responsabilidade sobre as consequências de se optar por esse caminho. Ódio sim, violência sim. Mas contra quem e como?
ResponderExcluirInteressante sua análise condescendente procurando respostas num texto que não se propõe a trazer nenhuma solução final. Até porque, se tivesse eu a resposta para a sua pergunta, estaria ganhando dinheiro com ela e resolvendo o problema do racismo e não escrevendo artigos de opinião.
ExcluirMas, para além disto, é importante perguntar: quem é que vai ao racista (e sim, todo branco é racista, existem alguns estudos que demonstram isso de maneira brilhante) pedindo à ele a resolução destes problemas? Você vai? A força transformadora do ódio deve ser bem canalizada, até porque pessoalizar a questão do racismo ou mesmo tornar Fanon o homem que fala sobre experiências pessoais é pobre e injusto. Não me propus a dar caminhos à seguir, não é esta a proposta do texto. Cada um com a sua cabaça, meu querido!